A Identidade como Recurso Criativo dos Macaenses

Marisa C. Gaspar

EN/PT


A Identidade Macaense: Que Futuro? Este foi o exercício de reflexão, proposto fazer-se em formato de mesa redonda, inserido no programa de atividades da Fundação Oriente para assinalar os 20 anos da transferência de soberania do território de Macau e estabelecimento da Região Administrativa Especial da República Popular da China, a RAEM. A minha participação no evento coincidiu, temporalmente, com a revisitação do meu maior trabalho sobre a comunidade euroasiática macaense – os filhos da terra – e as suas redes de atores e interações sociais em torno da “trama” da construção de identidades, inseridas em processos políticos e económicos complexos, simultaneamente locais e globais, no espaço sociocultural de Macau. A questão, em muito similar às interrogações e problemáticas levantadas pela minha investigação, voltou a ser-me colocada, agora, no espectro temporal de 20 anos de história da RAEM.

Num contexto em acelerada transformação física e social provocada pelo crescimento vertiginoso da economia do jogo que ano após ano se supera e atrai, também em crescendo, novas populações de trabalhadores emigrantes e milhões de turistas na sua maioria proveniente da China continental que tentam a sorte nos casinos, acotovelam-se na área histórica demarcada como património da humanidade e saciam o apetite e a curiosidade com a variada oferta culinária que a cidade UNESCO da gastronomia tem para lhes oferecer; como estão os macaenses e como encaram o seu futuro neste novo Macau? É na atual conjuntura da abertura de Macau à China e ao mundo que entre os macaenses se instala um sentimento de relativa crise de identidade, para uns, pela necessidade de preparação das novas gerações para viverem numa sociedade mais competitiva e exigente, para outros, pelo inevitável desaparecimento da tradicional forma de ser e de estar da comunidade macaense. O facto de não ser consensual o modo como cada macaense se sente enquanto membro daquela “comunidade imaginada”, especialmente em situações de mudança social, explica por que razão a sua identidade é escolhida com uma certa liberdade pessoal e vai sofrendo alterações ao longo do tempo. São os próprios macaenses que criam a sua identidade (pessoal e coletiva) – e a sua necessária ambivalência identitária – segundo aqueles que são os interesses privados e as interpretações públicas que lhe estão subjacentes num determinado período histórico.

Os macaenses defendem agora uma estratégia de sobrevivência sobretudo cultural enquanto seres globais, multiétnicos e multiculturais; encontrando-se a sua vantagem competitiva na manutenção da diferença identitária macaense, hoje associada ao reconhecimento e salvaguarda de um património cultural imaterial único no mundo. A culinária e a língua patuá dos macaenses, enraizadas numa miscigenação de valores e tradições de matriz portuguesa, desenvolvidas no espaço cosmopolita e de coabitação multiétnica que sempre definiu Macau, são as manifestações culturais do património secular da comunidade e ganharam, para ela, o estatuto de eixos estruturantes da sua identidade. É a mistura típica do macaense que aparece valorizada como uma marca própria e distintiva da comunidade, independentemente da composição étnica ou dos contextos familiares das pessoas que a integram.

É como símbolo de uma visão particular da história de Macau – a de um lugar de encontro do Oriente com o Ocidente (ou da China com Portugal), acrescentando-lhe o compromisso político assumido com o princípio “um país, dois sistemas” no qual assenta a constituição da RAEM – onde a origem e a evolução da comunidade macaense se confundem com ela e lhe dão substância, que os macaenses estão novamente a reposicionar-se no projeto identitário em construção para Macau. A defesa pela sua identidade e cultura crioulas e o reconhecimento institucional do seu património cultural revela a busca, da sua parte, por uma nova lógica de regalias através de práticas legitimadoras na contribuição histórica, ideológica e simbólica que Macau representa para a China. As inscrições da gastronomia macaense e do teatro em patuá na lista do Património Cultural Imaterial da República Popular da China em junho de 2021, nove anos depois de terem sido listados como património de Macau, são ilustrativas de como a legitimação e projeção destes marcadores da identidade étnica e cultural macaense tem renovando, entre os macaenses a viver em Macau e no exterior, a importância histórica da comunidade e do seu tradicional papel de mediadores culturais.

O reconhecimento da comunidade macaense e da sua identidade cultural de características híbridas singulares, agora a legitimada enquanto património nacional da China, não só, testemunham a resiliência dos macaenses, como também, contam a história de Macau ao longo dos séculos. O património macaense, assim, reiterado pelas autoridades políticas de Macau e da China ao longo dos 20 anos da existência da RAEM, fazem realçar o papel da região enquanto promotora do intercâmbio e da coexistência multicultural no contexto dos grandes projetos de cooperação político-económica da China, sejam eles, o da criação da Grande Baía de Guangdong, o do estreitamento de relações com os países de língua portuguesa, ou o da iniciativa global da Nova Rota da Seda do Século XXI. Mas, serão os macaenses do futuro iguais aos do presente? São os do presente como foram os do passado? A resposta é unânime: não! Se há um aspeto que a etnografia da comunidade macaense põe em evidência é o da sua resiliência e adaptação ao meio envolvente. Com os seus antepassados, os macaenses aprenderam a ser criativos e úteis para a sociedade de Macau. No presente aposta-se na promoção turística das tradições culturais representativas do património local que recuperam um passado ancestral de Macau e lançam as pontes para o futuro da cidade que se quer transformar num centro internacional de turismo e lazer e da identidade dos macaenses que, tal como o bambu, é flexível e fluída, reinventando-se permanentemente. Quais serão, no futuro, os recursos criativos e as aspirações das gerações vindouras (ou dos líderes desses novas gerações que vão substituído os líderes das anteriores) no que diz respeito à reprodução social e cultural da comunidade macaense? A salvaguarda do património cultural imaterial (e porque indissociáveis, da identidade) dos macaenses, que agora também é património de Macau e da China, tem assumido absoluta centralidade na comunidade e, ao que tudo indica, a celebração da sua singularidade que põe em evidência o contacto e a mistura entre os dois extremos da eurásia, será um desses valiosos recursos criativos.

Sobre Marisa:

Marisa C. Gaspar é doutorada em Antropologia e exerce as suas atividades de investigadora de pós-doutoramento no SOCIUS/CSG – ISEG da Universidade de Lisboa e de investigadora visitante no Instituto de Estudos Europeus de Macau. Os seus atuais interesses de pesquisa são sobre turismo cultural e gastronómico em Macau, comunidade macaense, mudança social, património imaterial, identidade e ambivalência, antropologia económica e política. É autora dos livros, No Tempo do Bambo: Identidade e Ambivalência entre Macaenses (2015) uma edição do Instituto do Oriente – ISCSP/Universidade de Lisboa e Heirs of the Bamboo: Identity & Ambivalence among the Eurasian Macanese (2020), publicado pela Berghahn Books, entre vários outros textos académicos.

One thought on “A Identidade como Recurso Criativo dos Macaenses

Leave a comment

Design a site like this with WordPress.com
Get started